Um
jornal de escola tem naturalmente um caráter próprio que o distingue.
Destina-se, antes de mais nada, à comunidade escolar e tem por isso de
corresponder aos interesses, preocupações e objetivos que norteiam essa
comunidade. Tem de acompanhar o pulsar da vida da escola, divulgar as suas
atividades e iniciativas. Tem ainda de conceder um lugar privilegiado às
produções da população discente, de forma a estimular as suas potencialidades e
a fomentar a sua criatividade.
Assim sendo, como poderá alguém, afastado da comunidade
escolar há vários anos, longe das aulas, dos alunos, das múltiplas peripécias
que enchem o dia-a-dia da vida de qualquer estabelecimento de ensino (mesmo que
isso não signifique menos interesse por todas as questões que digam respeito à
educação), dar um contributo válido ao jornal da escola, seja ele lido em
formato papel ou digital? Quando me foi proposta colaboração, foi este o
problema que se me pôs de imediato: que temas abordar, de que assuntos falar? O
acaso sugeriu-me uma resposta.
Folheando não sei que revista,
deparei com a transcrição de um pequeno texto extraído da Exortação Apostólica,
Evangelii Gaudium, redigida pelo Papa
Francisco e publicada a 24 de novembro de 2013, por altura do encerramento do
Ano da Fé. Era este o texto: Não é
possível que a morte por enregelamento de um idoso não seja notícia, enquanto o
é a descida de dois pontos na bolsa. Isto é exclusão. Vinda do mais alto
representante da Igreja, esta afirmação, algo inesperada para mim, suscitou-me
admiração e total concordância. Não me lembro de ter encontrado alguma vez uma
reprovação tão clara e direta da sociedade em que vivemos. A desumanização, a injustiça,
a inversão total de valores que a dominam não poderiam ter sido expressas de
forma mais explícita. A leitura de outros passos da Exortação relativos a esta
questão dos desequilíbrios sociais e da exclusão reafirmam e aprofundam a
crítica. Eis um exemplo: A adoração do
antigo bezerro de ouro encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do
dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo
verdadeiramente humano (…) A ambição do ter e do poder não conhece limites.
Foi sempre opinião minha que questões como
esta podem fornecer ao professor momentos, mesmo que breves, de reflexão com os
seus alunos. A disciplina que oferece mais possibilidades para este tipo de
intervenção é, sem dúvida, a de Português. Os programas desta disciplina,
qualquer que seja o ano, incluem, além do estudo de autores de diferentes
épocas, a leitura de textos, literários ou não, em que a crítica social surge
frequentemente, com maior ou menor extensão e profundidade, tornando-se assim fácil estabelecer pontos
de contacto entre os autores ou rubricas programáticas e a atualidade vivida
pelos alunos. Neste caso, creio poder fazer-se isso mesmo.
Gil Vicente foi o autor cujo nome
imediatamente me ocorreu ao ler o referido excerto da Exortação Evangélica. Na
verdade, poucos como ele souberam lançar um olhar crítico, penetrante e
certeiro sobre a sociedade do seu tempo e converter esse olhar em situações de
grande comicidade, oferecendo muitas vezes a possibilidade de estabelecer um
confronto fácil com a atualidade. É o caso, por exemplo, do “Auto da Feira”. Vejamos
porquê. A peça apresenta-nos, num primeiro momento, a organização de uma feira
por iniciativa de Mercúrio. Realizada em dia de Natal, esta feira tem
características especiais, como nos é explicado pelo Tempo, convocado por
Mercúrio para ser mercador-mor. Chama-se Feira das Graças e realiza-se em honra
da Virgem. É, pois, no contexto de uma feira que Gil Vicente, misturando
personagens alegóricas e personagens humanas, nos dá conta de um mundo do
avesso, o contrário daquilo que deveria ser, um mundo em que se operou uma
verdadeira inversão de valores. Na feira comparecem feirantes vários, entre
eles Roma, simbolizando a Igreja e o Papa, e o próprio Diabo. Este está
confiante no sucesso da venda da sua mercadoria. Quando o Tempo pede ajuda ao
Serafim para o expulsar, pois conhece bem o tipo de mercadorias que ele tem
para vender, ele defende a sua presença, afirmando:
Toda a glória de viver
das
gentes é ter dinheiro
e
quem muito quiser ter
cumpre-lhe de ser primeiro
o
mais ruim que puder.
E pois são desta maneira
os
contratos dos mortais,
não me lanceis vós da feira
onde eu hei de vender mais
que todos à derradeira.
Quer se evoque a adoração do
bezerro de ouro ( Evangelii Gaudium ), quer se fale em contratos com o diabo ( “Auto
da Feira” ), o que está em causa é o valor excessivo atribuído à riqueza e ao
dinheiro, fazendo com que tudo gire em torno deles e com que sejam esquecidos
valores humanos essenciais como a solidariedade e justiça social, esquecimento
que é sinónimo de exclusão. A par destes, outros valores aparecem pervertidos.
O Diabo sabe bem do que está a falar quando aconselha:
E pois agora à verdade
chamam Maria Peçonha,
e parvoíce à vergonha,
e aviso à ruindade,
peitai a quem vo-la ponha,
à ruindade, digo eu:
e aconselho-vos mui bem,
porque quem bondade tem
nunca o mundo será seu,
e mil canseiras lhe vem.
Não se poderia ser mais explícito.
Há, no entanto, que dar aqui um
esclarecimento. Na primeira metade do século XVI (o auto vicentino é
provavelmente de 1528), a Igreja conheceu tempos conturbados e difíceis. A vida
faustosa e o comportamento corrupto de muitos dos seus membros fazem com que a
Igreja se torne alvo de violentas críticas que irão culminar no movimento da
Reforma. O “Auto da Feira” faz-se eco dessas críticas e Gil Vicente fá-lo de
forma desassombrada. Como já foi atrás referido, Roma vem também à Feira. Vem em
busca de paz, verdade e fé. Mas quando lhe é proposto alcançar esses bens através
de santa vida, Roma apenas tenta obtê-los mediante a concessão de perdões, estações e jubileus, ou seja,
através de indulgências que a Igreja distribuía
a troco de dinheiro. Não aceita levar uma santa vida e vai embora sem ter
chegado a acordo com os promotores da feira. Não há neste aspeto, como se pode
ver, nenhum paralelo com a atualidade.
Perto de quinhentos anos volvidos,
é agora o chefe da Igreja que aponta claramente os malefícios provocados pelo
poder do dinheiro. Os tempos mudaram, as sociedades sofreram mudanças enormes,
a ciência e a técnica produziram alterações profundas nas nossas vidas. Só a
ambição e a cobiça humanas permanecem as mesmas… Que fazer? Sem dúvida que este
é um bom tema de reflexão.
Prof.ª Helena Monteiro
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