quarta-feira, 19 de março de 2014

Que direi?


                   Um jornal de escola tem naturalmente um caráter próprio que o distingue. Destina-se, antes de mais nada, à comunidade escolar e tem por isso de corresponder aos interesses, preocupações e objetivos que norteiam essa comunidade. Tem de acompanhar o pulsar da vida da escola, divulgar as suas atividades e iniciativas. Tem ainda de conceder um lugar privilegiado às produções da população discente, de forma a estimular as suas potencialidades e a fomentar a sua criatividade.
Assim sendo, como poderá alguém, afastado da comunidade escolar há vários anos, longe das aulas, dos alunos, das múltiplas peripécias que enchem o dia-a-dia da vida de qualquer estabelecimento de ensino (mesmo que isso não signifique menos interesse por todas as questões que digam respeito à educação), dar um contributo válido ao jornal da escola, seja ele lido em formato papel ou digital? Quando me foi proposta colaboração, foi este o problema que se me pôs de imediato: que temas abordar, de que assuntos falar? O acaso sugeriu-me uma resposta.
           Folheando não sei que revista, deparei com a transcrição de um pequeno texto extraído da Exortação Apostólica, Evangelii Gaudium, redigida pelo Papa Francisco e publicada a 24 de novembro de 2013, por altura do encerramento do Ano da Fé. Era este o texto: Não é possível que a morte por enregelamento de um idoso não seja notícia, enquanto o é a descida de dois pontos na bolsa. Isto é exclusão. Vinda do mais alto representante da Igreja, esta afirmação, algo inesperada para mim, suscitou-me admiração e total concordância. Não me lembro de ter encontrado alguma vez uma reprovação tão clara e direta da sociedade em que vivemos. A desumanização, a injustiça, a inversão total de valores que a dominam não poderiam ter sido expressas de forma mais explícita. A leitura de outros passos da Exortação relativos a esta questão dos desequilíbrios sociais e da exclusão reafirmam e aprofundam a crítica. Eis um exemplo: A adoração do antigo bezerro de ouro encontrou uma nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano (…) A ambição do ter e do poder não conhece limites.                                                                                                                                                                              
                    Foi sempre opinião minha que questões como esta podem fornecer ao professor momentos, mesmo que breves, de reflexão com os seus alunos. A disciplina que oferece mais possibilidades para este tipo de intervenção é, sem dúvida, a de Português. Os programas desta disciplina, qualquer que seja o ano, incluem, além do estudo de autores de diferentes épocas, a leitura de textos, literários ou não, em que a crítica social surge frequentemente, com maior ou menor extensão e profundidade, tornando-se assim fácil estabelecer pontos de contacto entre os autores ou rubricas programáticas e a atualidade vivida pelos alunos. Neste caso, creio poder fazer-se isso mesmo.
                   Gil Vicente foi o autor cujo nome imediatamente me ocorreu ao ler o referido excerto da Exortação Evangélica. Na verdade, poucos como ele souberam lançar um olhar crítico, penetrante e certeiro sobre a sociedade do seu tempo e converter esse olhar em situações de grande comicidade, oferecendo muitas vezes a possibilidade de estabelecer um confronto fácil com a atualidade. É o caso, por exemplo, do “Auto da Feira”. Vejamos porquê. A peça apresenta-nos, num primeiro momento, a organização de uma feira por iniciativa de Mercúrio. Realizada em dia de Natal, esta feira tem características especiais, como nos é explicado pelo Tempo, convocado por Mercúrio para ser mercador-mor. Chama-se Feira das Graças e realiza-se em honra da Virgem. É, pois, no contexto de uma feira que Gil Vicente, misturando personagens alegóricas e personagens humanas, nos dá conta de um mundo do avesso, o contrário daquilo que deveria ser, um mundo em que se operou uma verdadeira inversão de valores. Na feira comparecem feirantes vários, entre eles Roma, simbolizando a Igreja e o Papa, e o próprio Diabo. Este está confiante no sucesso da venda da sua mercadoria. Quando o Tempo pede ajuda ao Serafim para o expulsar, pois conhece bem o tipo de mercadorias que ele tem para vender, ele defende a sua presença, afirmando:

                                            Toda a glória de viver
                                            das gentes é ter dinheiro
                                            e quem muito quiser ter
                                            cumpre-lhe de ser primeiro
                                            o mais ruim que puder.

                                                 E pois são desta maneira
                                             os contratos dos mortais,
                                             não me lanceis vós da feira
                                             onde eu hei de vender mais
                                             que  todos à derradeira.
                     
                     Quer se evoque a adoração do bezerro de ouro ( Evangelii Gaudium ), quer se fale em contratos com o diabo ( “Auto da Feira” ), o que está em causa é o valor excessivo atribuído à riqueza e ao dinheiro, fazendo com que tudo gire em torno deles e com que sejam esquecidos valores humanos essenciais como a solidariedade e justiça social, esquecimento que é sinónimo de exclusão. A par destes, outros valores aparecem pervertidos. O Diabo sabe bem do que está a falar quando aconselha:

                                                        E pois agora à verdade
                                                    chamam Maria Peçonha,
                                                    e parvoíce à vergonha,
                                                    e aviso à ruindade,
                                                    peitai a quem vo-la ponha,
                                                    à ruindade, digo eu:
                                                    e aconselho-vos mui bem,
                                                    porque quem bondade tem
                                                    nunca o mundo será seu,
                                                    e mil canseiras lhe vem.

                  Não se poderia ser mais explícito.
                   Há, no entanto, que dar aqui um esclarecimento. Na primeira metade do século XVI (o auto vicentino é provavelmente de 1528), a Igreja conheceu tempos conturbados e difíceis. A vida faustosa e o comportamento corrupto de muitos dos seus membros fazem com que a Igreja se torne alvo de violentas críticas que irão culminar no movimento da Reforma. O “Auto da Feira” faz-se eco dessas críticas e Gil Vicente fá-lo de forma desassombrada. Como já foi atrás referido, Roma vem também à Feira. Vem em busca de paz, verdade e fé. Mas quando lhe é proposto alcançar esses bens através de santa vida, Roma apenas tenta obtê-los mediante a concessão de perdões, estações e jubileus, ou seja, através de indulgências que a Igreja distribuía a troco de dinheiro. Não aceita levar uma santa vida e vai embora sem ter chegado a acordo com os promotores da feira. Não há neste aspeto, como se pode ver, nenhum paralelo com a atualidade.
                    Perto de quinhentos anos volvidos, é agora o chefe da Igreja que aponta claramente os malefícios provocados pelo poder do dinheiro. Os tempos mudaram, as sociedades sofreram mudanças enormes, a ciência e a técnica produziram alterações profundas nas nossas vidas. Só a ambição e a cobiça humanas permanecem as mesmas… Que fazer? Sem dúvida que este é um bom tema de reflexão.

                                                                                                       Prof.ª Helena Monteiro

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